COMPREENSÃO DO JEJUM NA UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA: EXPLORANDO SEU PERFIL E MOTIVAÇÕES.

UNDERSTANDING FASTING IN THE INTENSIVE CARE UNIT: EXPLORING ITS PROFILE AND MOTIVATIONS.

 

CISCATO, Júlia1; FREIRIA, Carolina2;

1Nutricionista, Residência Multiprofissional em Saúde Intensiva, Universidade São Francisco

2Professora, Doutora, Docente do curso de Nutrição da Universidade São Francisco.

juliaciscato.nutricao@gmail.com

 

RESUMO. Pacientes críticos enfrentam desafios metabólicos complexos, resultando em perda de massa muscular e desnutrição. A Terapia Nutricional (TN) é crucial, mas períodos prolongados de jejum são frequentes dentro da Unidade de Intensiva (UTI). Estudo transversal descritivo desenvolvido na UTI de um Hospital Universitário. Foram incluídos 301 pacientes de ambos os sexos, admitidos na UTI durante os meses de março a maio de 2023. A coleta de dados abordou o tempo de jejum, variáveis demográficas e de saúde. A análise estatística foi realizada pelo software Stata versão 14, nível de significância <0,05. A idade média foi inferior a 60 anos, predominantemente masculina (53,49%). Mais de 50% em risco nutricional; cerca de 38% eutróficos. Ventilação mecânica não era necessária para 58,47%. Comorbidade mais comum: hipertensão arterial sistêmica (44,09%). Um quarto chegou à UTI com terapia nutricional prévia. Alimentação oral foi liberada para 68,77%, com 36,88% recebendo terapia nutricional nas primeiras 12 horas. Diferenças significativas foram observadas entre o tempo de jejum e as variáveis, sexo (p=0,03), risco nutricional (p<0,001), uso de VM (p<0,001), HAS (p=0,011), outras comorbidades (p=0,004), equipe assistente (p<0,001), motivo do jejum (p<0,001) e dieta após o jejum (p<0,001). Os resultados destacam a importância de compreender os fatores associados ao jejum prolongado na UTI. Apesar dos dados iniciais, ressalta-se a necessidade de abordagens personalizadas e interdisciplinares para otimizar desfechos, incentivando a TN precoce. Estudos mais abrangentes são essenciais para uma compreensão mais aprofundada das variáveis demográficas e de saúde e as relações com o jejum em pacientes críticos.

Palavras-chave: Jejum; Terapia Nutricional; Unidade de Terapia Intensiva; Risco Nutricional; Nutrição.

ABSTRACT. Critically ill patients face complex metabolic challenges resulting in muscle loss and malnutrition. Nutritional Therapy (NT) is essential, but prolonged fasting periods are common in the Intensive Care Unit (ICU). Cross-sectional descriptive study carried out in the ICU of a University Hospital. 301 patients of both sexes were included, admitted to the ICU from March to May 2023. Data collection covered fasting time, demographic and health variables. Statistical analysis used Stata software version 14, adopting a significance level <0.05. The average age was less than 60 years old, with a predominance of males (53.49%). More than 50% were at nutritional risk; about 38% were well nourished. Mechanical ventilation was unnecessary for 58.47%. The most common comorbidity was systemic arterial hypertension (44.09%). Three-quarters had other comorbidities. A quarter were admitted to the ICU with previous nutritional therapy. Oral feeding was allowed for 68.77%, with 36.88% receiving nutritional therapy within the first 12 hours of ICU admission. Significant differences were observed between fasting time and variables: gender (p=0.03), nutritional risk (p<0.001), use of mechanical ventilation (p<0.001), high blood pressure (p=0.011), other comorbidities (p=0.004), care team (p<0.001), reason for fasting (p<0.001) and post-fasting diet (p<0.001). The results highlight the importance of understanding the factors associated with prolonged fasting in the ICU. Despite the initial data, there is a need for personalized and interdisciplinary approaches to optimize results, promoting early NT. More comprehensive studies are essential for a deeper understanding of demographic and health variables and their relationships with fasting in critically ill patients.

 

Keywords: Fasting, Nutritional Therapy, Intensive Care Unit, Critical Care, Nutrition Surveys, Nutrition.

 

INTRODUÇÃO

 

Os pacientes críticos constituem um grupo extremamente heterogêneo de indivíduos quanto ao diagnóstico e gravidade, cuja afecções geram respostas metabólicas inesperadas, as quais acontecem devido a cascata de distúrbios metabólicos e hormonais que levam a diferentes graus de inflamação, podendo resultar em aumento do gasto energético e catabolismo proteico, independentemente do estado nutricional preexistente dos pacientes (SINGER et al., 2023). Tal diversidade, por sua vez, dificulta a instauração de protocolos para avaliar o tratamento oferecido pelas especialidades, incluindo a nutrição (RUIZ SANTANA, 2023).

Do ponto de vista nutricional, os pacientes encontram-se num estado caracterizado pela tentativa corporal em preservar as funções orgânicas e ao mesmo tempo fornecer substratos ao sistema imunológico, gerando perda de massa muscular e reservas calóricas que, quando prolongadas, podem levar à desnutrição (KOEKKOEK; VAN ZANTEN, 2018).

Esta condição ocorre quando há a falta de nutrientes devido a ingestão inadequada ou à incapacidade do organismo de absorver e utilizar eficientemente os nutrientes. Podendo ser desencadeada por um desequilíbrio metabólico e hormonal oriundo de uma doença com alta demanda calórico proteica, que promove o comprometimento do estado funcional, composição corporal, imunidade e desfecho clínico (ANDRADE et al., 2023).

 Nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI), diferente do que em outras clínicas, o objetivo do suporte nutricional, sendo este referente ao fornecimento, por via oral, enteral ou parenteral, de calorias, proteínas, vitaminas, minerais e líquidos, é manter o estado nutricional prévio à internação do indivíduo, entendido pela manutenção do peso e a preservação da massa magra, a fim de evitar piores prognósticos (COMPHER et al., 2022; RUIZ SANTANA, 2023). Preconiza-se, segundo os protocolos internacionais mais recentes, que a Terapia Nutricional (TN) deve ser iniciada dentro de 24 a 48 horas da admissão, caso a dieta oral seja inviável. A submissão de pacientes em estado crítico à terapia nutricional enteral (TNE) ou terapia nutricional parenteral (TNP), na maioria dos casos, está associada a melhores resultados em relação a longos períodos de jejum (NASCIMENTO et al., 2021).

Apesar desta importância, podem surgir durante o período de internação intercorrências como intolerância alimentar, necessidade de manipular o paciente, infusão de medicamentos, exames, procedimentos clínicos e instabilidade hemodinâmica que tornam a interrupção da administração da dieta inevitável, resultando numa divergência entre a oferta nutricional e as reais necessidades orgânicas do paciente (ANDRADE et al., 2023; COMPHER et al., 2022).

Devido a ocorrência desses fatos, é comum observar, no ambiente das UTIs, pacientes em jejum por um período prolongado de forma dispensável. Assim, este deve ser identificado pela equipe multiprofissional para prevenção de alterações metabólicas e complicações clínicas, como alterações glicêmicas bruscas pela redução da secreção de insulina e aumento da secreção de glucagon e catecolaminas, levando à glicogenólise e lipólise(CASTRO et al., 2023). Quando se acrescenta a resposta ao estresse, o catabolismo é acelerado, levando à perda de massa muscular, resultando, muitas vezes, em desnutrição e maiores chances de um desfecho desfavorável. Sendo assim, pacientes críticos em jejum podem se beneficiar de vias alternativas de alimentação, respeitando as particularidades de cada caso (CASTRO et al., 2023; DE-AGUILAR-NASCIMENTO et al., 2021; TOLEDO et al., 2018).

           Sabendo da importância da Terapia Nutricional precoce e seus impactos positivos em pacientes hospitalizados, principalmente os críticos, este trabalho foi realizado a fim de explorar quais eram as características demográficas e de saúde da população internada na UTI de um hospital universitário como forma de compreender quais eram os principais motivos do jejum dos pacientes.

          

METODOLOGIA

 

Desenho do estudo, Local e População 

 

Estudo transversal descritivo desenvolvido na UTI do Hospital Universitário São Francisco, localizado em Bragança Paulista, SP, Brasil. Foram incluídos 301 pacientes de ambos os sexos, admitidos na UTI durante os meses de março a maio de 2023 e nenhum critério de exclusão foi adotado a fim de avaliar o cenário real de atendimento dos pacientes. 

        Para a presente pesquisa foram selecionadas as seguintes variáveis coletadas do prontuário eletrônico dos pacientes: idade, sexo, comorbidades (consideradas: Diabetes Mellitus (DM), Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS) e Dislipidemia (DLP) e outras), uso de ventilação mecânica (VM), setor de origem (enfermaria, pronto socorro e centro cirúrgico), equipe assistente (Clínica Médica, Cirurgia Geral, Cardiologia, Neurocirurgia, Coloproctologia, Cirurgia Cardíaca, Ginecologia e Obstetrícia, Ortopedia e outras (Urologia, Otorrinolaringologia, Cirurgia Vascular e Nefrologia)) e desfecho clínico (alta ou óbito). 

Para a caracterização do perfil nutricional dos pacientes, a avaliação antropométrica foi realizada pela nutricionista do setor, sendo aferido e coletado os dados: peso e altura. O peso e altura foram relatados pelo paciente e/ou acompanhante. Na impossibilidade de aferição, esses foram estimados seguindo a fórmula de Chumlea que utiliza como variáveis altura do joelho (AJ) e a circunferência do braço (CB) em cm (CHUMLEA; GUO, 1992). A classificação do Índice de Massa Corporal (IMC) seguiu os padrões da Organização Mundial da Saúde para adultos os preceitos do Organização Panamericana de Saúde para idosos (60anos) (HEALTH MINISTRY, 2011) organizado na Tabela 1. Nutritional Risk Screening (NRS) (KONDRUP et al., 2003), sendo considerado risco nutricional pacientes que tiveram pontuação maior ou igual a 3.

 

Tabela 1 – Classificação do IMC para adultos e idosos.

 

Adultos (kg/m2)

Idosos (kg/m2)

Baixo Peso

<18,50

<23,00

Eutrofia

18,50-24,99

23,00-27,99

Sobrepeso

25,00-29,99

28,00-29,99

Obesidade

30,00-34,99

30,00-34,99

Obesidade Extrema

>35,00

>35,00

 

Fonte: Próprio autor.

 

O motivo do jejum foi classificado entre as seguintes opções: Instabilidade hemodinâmica, sem sonda nasoenteral, pré-operatório, pós-operatório, possível extubação, risco de broncoaspiração, sonda nasogástrica aberta/êmese, solicitação de equipe assistente e TN: pacientes admitidos na UTI em TN prévia. A variável dieta após o jejum levou em consideração o início de alguma TN e consequentemente o término do jejum, apresentando como categorias: via oral (VO), enteral ou parenteral. Considerou-se precoce a TN iniciada em qualquer via até 48 horas da admissão na UTI. E o tempo de internação na UTI foi contabilizado em dias.

A variável de interesse foi o tempo de jejum em horas, contabilizado a partir da admissão na UTI até início de alguma TN. Para a descrição da variável também foi utilizada a estratificação em >12 horas, 12.1-24 horas, 24.1- 48 horas e ≥ 48 horas.

A pesquisa obedeceu aos princípios éticos inerentes à pesquisa envolvendo seres humanos e foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade São Francisco–SP/Brasil, sob o CAAE: 61013922.4.0000.55.14. 

 

Análise estatística 

 

Foram estimados as médias e o desvio-padrão para as variáveis contínuas e, para as variáveis categóricas, foram estimados os valores absolutos e as proporções (frequência relativa). O tempo de jejum em horas (com seus respectivos desvios-padrão) foi descrito em função das variáveis demográficas e de saúde. O teste de normalidade de Shapiro Wilk mostrou que a distribuição não aderiu à normalidade, portanto, para a comparação das médias entre os grupos das variáveis independentes foram utilizados testes não-paramétricos, sendo o teste de Mann-Whitney para comparações entre 2 categorias e o Kruskal-Wallis para comparações entre 3 categorias ou mais. Todas as análises estatísticas foram realizadas no software Stata versão 14, adotando-se nível de significância de <0,05.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

 

Na Tabela 2 são descritas as características da população estudada segundo as variáveis demográficas e de saúde. Os pacientes apresentaram idade média menor do que 60 anos, sendo sexo masculino predominante (53,49%). Mais da metade da população apresentou risco nutricional de acordo com a NRS, 2002, e aproximadamente 38% da amostra era eutrófica. Mais da metade da população não estava em uso de VM na admissão da UTI (58,47%), sendo que em relação as comorbidades 44,09% dos pacientes apresentaram HAS e 3/4 tinham alguma outra comorbidades (exceto DM, HAS e DLP). Um quarto dos pacientes foram admitidos na UTI em uso de alguma TN prévia e a alimentação VO foi liberada para 68,77% dos pacientes e 36,88% deles receberam alguma TN até as primeiras 12 horas de internação na UTI.

 

Tabela 2 - Características dos pacientes admitidos em uma Unidade de Terapia Intensiva. Bragança Paulista, SP, Brasil, 2023.

Variáveis

(n=301)

%

Idade

56,9 ± 19,32

Sexo

Masculino

161 (53,49%)

53,49

Feminino

140

46,51

Risco nutricional

Sim

192

63,79

Não

109

36,21

IMC *

26.01 ± 6.09

Baixo peso

51

22,27

Eutrofia

87

37,99

Sobrepeso

45

19,65

Obesidade

35

15,28

Obesidade Extrema

11

4,8

VM

Sim

125

41,53

Não

176

58,47

Comorbidades

Outras

228

75,75

HAS

133

44,19

DM

84

27,91

DLP

32

10,63

Setor de origem

Centro Cirúrgico

141

46,84

Pronto Socorro

130

43,19

Enfermaria

30

9,97

Desfecho

Alta da UTI

242

80,4

Óbito

59

19,6

Equipe assistente

Clínica Médica

73

24,25

Cirurgia Geral

58

19,27

Neurocirurgia

40

13,29

Outras

28

9,3

Cardiologia

25

8,31

Ortopedia

23

7,64

Ginecologia e Obstetrícia

20

6,64

Coloproctologia

18

5,98

Cirurgia Cardíaca

16

5,32

Motivo do jejum

Terapia Nutricional

78

25,91

Instabilidade Hemodinâmica

49

16,28

Pós-operatório

48

15,95

Sem sonda

37

12,29

Equipe assistente

37

12,29

SNG e êmese

17

5,65

Risco de broncoaspiração

17

5,65

Extubação

12

3,99

Pré-operatório

6

1,99

Dieta após o jejum

VO

207

68,77

Enteral

72

23,92

Parenteral

22

7,31

Tempo de jejum (horas)

23,94 ± 23,59

≤ 12 horas

111

36,88

12.1 - 24h

82

27,24

24.1 - 48h

73

24,25

≥ 48 h

35

11,63

Dias de UTI

5,46 ± 8,58

 

*IMC: n=225 (não foi possível acessar essas informações de todos os pacientes do estudo)

Fonte: Próprio autor.

 

Na tabela 3 evidencia-se a média de jejum de acordo com as variáveis demográficas e de saúde. Diferenças significativas foram observadas entre o tempo de jejum e as variáveis risco nutricional (p<0,001), uso de VM (p<0,001), equipe assistente (p<0,001), motivo do jejum (p<0,001) e dieta após o jejum (p<0,001).

 

Tabela 3 - Comparação entre tempo de jejum e as variáveis demográficas e de saúde dos pacientes admitidos em uma Unidade de Terapia Intensiva. Bragança Paulista, SP, Brasil, 2023.

Variáveis

(n=301)

valor p

Risco nutricional

<0,001ª

Sim

29,38 ± 26,17

Não

14,37 ± 13,77

VM

<0,001ª

Sim

33,09 ± 27,70

Não

17,45 ± 17,44

Equipe assistente

<0,001b

Cirurgia Geral

37,17 ± 29,17

Coloproctologia

31,89 ± 22,70

Cirurgia Cardíaca

28,36 ± 23,26

Ortopedia

22,73 ± 26,82

Clínica Médica

20,99 ± 23,63

Neurocirurgia

19,48 ± 16,93

Outras

19,40 ± 16,69

Cardiologia

16,0 ± 16,74

Ginecologia e Obstetrícia

12,26 ± 10,61

Motivo do jejum

<0,001b

SNG e êmese

45,82 ± 20,04

Instabilidade Hemodinâmica

44,56 ± 34,23

Extubação

32,14 ± 22,76

Equipe assistente

31,77± 21,90

Pré-operatório

25,00 ± 11,81

Sem sonda

23,72± 16,88

Risco de bronco aspiração

19,23 ± 9,93

Pós-operatório

16,24 ± 12,93

TN

7,05 ± 6,65

Dieta após o jejum

<0,001b

Parenteral

39,00 ± 6,03

Enteral

26,58 ± 2,68

Via Oral

21,43 ± 1,58

Desfecho

0,178ª

Alta da UTI

22,67 ± 21,90

Óbito

29,19 ± 29,17

 

ªteste de Mann-Whitney. bteste Kruskall-Wallis. *IMC: n=225 (não foi possível acessar essas informações de todos os pacientes do estudo).

Fonte: Próprio autor.

 

DISCUSSÃO

 

A desnutrição é entendida mundialmente como um problema de saúde pública em países subdesenvolvidos e desenvolvidos. Em pacientes hospitalizados, esta pode representar de 40 a 60% no momento da admissão em países latino-americanos. Essa condição está relacionada com piores desfechos clínicos e aumento dos custos hospitalares (CORREIA et al., 2014). Dentre os cuidados em ambiente hospitalar para prevenir a desnutrição, destaca-se a atenção ao tempo de jejum dos pacientes, uma vez que as alterações metabólicas e o estresse estão ligados ao consumo exacerbado das reservas corporais (TOLEDO et al., 2018). Estima-se que pacientes críticos percam, em média, 2% de músculo esquelético por dia na primeira semana de internação na UTI. Tal efeito pode ser minimizado com TN precoce e cuidados individualizados, levando em consideração a condição clínica e as recomendações nutricionais de cada caso (FAZZINI et al., 2023)

No presente estudo, o tempo médio de jejum após a admissão na UTI aproximou-se de 24 horas, período dentre o qual 36,88% dos pacientes iniciaram alguma TN até as primeiras 12 horas, e 27,24% até as primeiras 24 horas de internação. A via alimentar mais prevalente foi a VO, representando 207 pacientes (68,77%), seguida da enteral e parenteral. Tais resultados corroboram com as principais diretrizes nacionais e internacionais sobre TN precoce em pacientes críticos(CASTRO et al., 2023; COMPHER et al., 2022; SINGER et al., 2023).

Segundo o artigo um da Resolução nº 663 de agosto de 2020, que dispõe as atribuições do nutricionista dentro da UTI, é de responsabilidade deste profissional garantir o direito à assistência nutricional adequada de todos os pacientes, além da avaliação do risco nutricional e acompanhamento da TN, entre outras. Com isso, faz-se necessário destacar a atuação da equipe de nutrição na influência positiva no tempo de jejum e acompanhamento nutricional, o que converge com um estudo recente que demostrou o impacto significativo da equipe de nutrição relacionado com maiores percentuais da meta de energia e proteína, além de menor tempo de VM em relação aos pacientes sem tal acompanhamento (LEE et al., 2018).

Outras duas variáveis estudadas foram o risco nutricional e o uso de VM. No contexto hospitalar, a avaliação do risco nutricional, feita preferencialmente nas primeiras 48 horas após a admissão, é um fator importante para pacientes hospitalizados, uma vez que a presença de risco está associada a desfechos desfavoráveis. A avaliação do risco, pela NRS 2002 (KONDRUP et al., 2003), leva em consideração dois grandes grupos: estado nutricional e gravidade da doença. Neste último, o critério em uso de VM é suficiente para que o indivíduo apresente risco nutricional, independente do seu estado nutricional. Vale ressaltar também que pacientes em UTI por mais de 48 horas são considerados em risco de desnutrição (SINGER et al., 2023). Em nosso estudo apesar dos pacientes com risco nutricional apresentarem tempo de jejum significativamente maior do que os que não tinham risco nutricional, ressalta-se que para ambos os grupos a média foi inferior as 48 horas preconizadas pelas principais diretrizes para pacientes críticos (CASTRO et al., 2023).

O jejum também foi significativamente maior em pacientes que necessitaram VM, 33,09 (± 27,70), em relação àqueles que não necessitaram de suporte respiratório. Um dos fatores que explicaria um maior jejum nestes casos é de que pacientes que necessitam de VM, em geral, apresentam-se mais graves do que pacientes sem suporte respiratório e a presença do tubo orotraqueal inviabiliza a alimentação VO. Sendo assim, para pacientes hemodinamicamente estáveis e com possibilidade de uso do trato gastrointestinal (TGI), a TNE é a mais indicada segundo Castro et al. (2023) e a Diretriz Brasileira de Ventilação Mecânica (2013). Os motivos de jejum apresentaram diferenças significativas entre si, entre eles o jejum devido uma possível extubação foi o terceiro maior e em sexto lugar a ausência da sonda nasoenteral. Sendo estes dois relacionado também, com impossibilidade de alimentação VO durante o uso de VM.

Um estudo recente realizado nos Estados Unidos envolvendo 27.887 pacientes sob VM, demonstrou uma redução na taxa de mortalidade hospitalar, diminuição na necessidade de VM e menos dias de cuidados intensivos em pacientes com TNE precoce (HAINES et al., 2023). Resultados positivos também foram encontrados quando a NE precoce foi associada com a mobilização precoce em pacientes críticos, em um estudo randomizado, duplo centro, controlado, foram identificados menor ocorrência de fraqueza adquirida na UTI, melhor independência funcional, e manutenção da força muscular. Ressalta-se que a manutenção e o acompanhamento multiprofissional de acordo com as necessidades individuais estão ligados aos desfechos favoráveis, sendo essencial o acompanhamento interdisciplinar (ZHOU et al., 2022).

Outro ponto de extrema relevância foi o tempo de jejum relacionado às especialidades cirúrgicas, cirurgia geral, coloproctologia, neurocirurgia e cirurgia cardíaca e suas repercussões, como jejum pré-operatório, pós-operatório e uso de SNG. Os pacientes da cirurgia geral representam a equipe com maior tempo de jejum 37.17 ± 29.17 horas. Na coloproctologia, apesar de não ter um número tão grande de pacientes na UTI 18 (5,98%), o tempo de jejum médio foi o segundo maior 31.89 ± 22.70 horas. A resposta catabólica frente ao estresse pós cirúrgico resulta na produção de marcadores inflamatórios e alterações hormonais que levam ao desenvolvimento de hiperglicemias. Tais alterações levam à redução da captação da glicose muscular e gordurosa, levando à perda de massa muscular (PĘDZIWIATR et al., 2018).

Um estudo realizado em Porto Alegre, RS, analisou o jejum pré-operatório efetivo em 507 pacientes e identificou que o tempo de jejum ultrapassou o recomendado, no qual as cirurgias foram realizadas em 55% (n = 280) dos pacientes após um período de jejum superior a 12 horas e em 34,8% (n = 177) com um jejum de 8 a 12 horas (FERNANDA CORRÊA DE CAMPOS et al., 2023).

É cediço que cirurgiões podem hesitar em iniciar TNE precoce em pacientes com trauma abdominal por receio de intolerância alimentar e potenciais complicações ligadas à alimentação como distensão abdominal, vômitos, diarreia e íleo.  Um estudo de coorte com 207 pacientes com trauma abdominal demonstrou que a TNE precoce, dentro das primeiras 72h, foi associada a menor risco de complicações infecciosas, menor tempo de internação na UTI e menor intolerância à dieta enteral com relação à nutrição enteral tardia (YIN et al., 2015).

A TNP pode ser usada de forma exclusiva ou suplementar. De acordo com as vias alimentares analisadas no presente estudo, 22 pacientes (7,31%) utilizaram NP, que foi iniciada após um período médio de 39,00 ± 6,03 horas sem qualquer, maior tempo entre as três vias alimentares. Os benefícios da utilização do TGI vão além dos nutricionais. Em pacientes sépticos, por exemplo, principalmente durante os primeiros dois dias, ocorre uma hiperpermeabilidade da barreira intestinal, podendo corroborar a produção de fatores de virulência pelas bactérias intestinais, impactando assim a função imunológica e ação anti-inflamatória. A manutenção do trofismo intestinal com a introdução de NE precoce parece trazer benefícios (CASTRO et al., 2023).

Assim, é importante destacar que tais dados podem sofrer limitações devido ao número amostral, a heterogeneidade dos pacientes e a gravidade dos casos, sendo necessário maior detalhamento da amostra sem tais comorbidades a fim de entender o principal motivo do jejum.

 

CONCLUSÃO

 

Os resultados encontrados possibilitaram uma melhor compreensão sobre fatores que resultam no jejum prolongado em pacientes da UTI. Ainda que iniciais, esses dados demonstraram a relevância da temática e a necessidade contínua de abordagens personalizadas e interdisciplinares para otimizar os desfechos dos pacientes, a partir do incentivo a TN precoce e da compreensão dos motivos do jejum em pacientes críticos. Apesar da implementação TN conforme as principais diretrizes, estudos mais abrangentes são necessários para uma compreensão mais aprofundada das variáveis demográficas e de saúde e o jejum em pacientes críticos.

 

REFERÊNCIAS

 

ANDRADE, M. DO C. V. et al. Monitoramento da terapia nutricional enteral ofertada para pacientes em cuidados intensivos. CONTRIBUCIONES A LAS CIENCIAS SOCIALES, v. 16, n. 8, 2023. Disponível em: https://ojs.revistacontribuciones.com/ojs/index.php/clcs/article/view/1250/948

ASSOCIAÇÃO DE MEDICINA INTENSIVA BRASILEIRA (AMIB); SOCIEDADE BRASILEIRA DE PNEUMOLOGIA E TISIOLOGIA (SBPT). Diretrizes brasileiras de ventilação mecânica – 2013. Brasília, 2013. Disponível em: https://indd.adobe.com/view/017f739a-847f-4587-9bef-15b9c01756ba

BRASIL. Conselho Federal de Nutricionistas. Resolução nº 663, de 28 de agosto de 2020. Dispõe sobre a definição das atribuições do Nutricionista em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) e dá outras exceções. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 ago. 2020. Seção 1, p. 225. Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-663-de-28-de-agosto-de-2020-274892134

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Orientações para a coleta e análise de dados antropométricos em serviços de saúde: Norma Técnica do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional - SISVAN . Brasília, 2011. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/orientacoes_coleta_analise_dados_antropometricos.pdf

CASTRO, M. G. et al. Diretriz BRASPEN de Terapia Nutricional no Paciente Grave. Braspen Journal, 2023. Disponível em: https://braspenjournal.org/article/10.37111/braspenj.diretrizDOENTEGRAVE/pdf/braspen-38-2%2C+Supl+2-6537d6b0a953950ad57860b3.pdf

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