CARACTERIZAÇÃO DOS INSTRUMENTOS UTILIZADOS NA AVALIAÇÃO NEUROPSICOLÓGICA INFANTOJUVENIL DISPONÍVEIS NO SATEPSI
CHARACTERIZATION OF INSTRUMENTS USED IN CHILD AND ADOLESCENT NEUROPSYCHOLOGICAL ASSESSMENT AVAILABLE IN SATEPSI
DOI: 10.24933/rep.v9i1.420
v. 9 n. 1 (2025)
SCAGLIONI, Júlia Arimura1; LIMA, Ricardo Franco de2;
1Discente do Curso de Psicologia, Universidade São Francisco, Campus Bragança Paulista - SP
2Professor Doutor do Curso de Psicologia e Colaborador do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia, Universidade São Francisco, Campinas - SP
ricardo.lima@usf.edu.br
RESUMO. A avaliação neuropsicológica é um procedimento técnico com objetivos clínicos, destinado a inferir o funcionamento cerebral e cognitivo a partir do comportamento. Para isso, diferentes métodos e técnicas são utilizados, incluindo instrumentos psicométricos que auxiliam a delinear o perfil neuropsicológico sob uma perspectiva nomotética. É fundamental tais instrumentos apresentem parâmetros psicométricos adequados. No Brasil, a avaliação desses parâmetros é realizada pelo Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos (SATEPSI). A fim de caracterizar instrumentos que podem ser utilizados na avaliação neuropsicológica infantojuvenil, foi realizado levantamento da lista de testes favoráveis do SATEPSI e consultas nos sites das editoras. Foram selecionados somente instrumentos destinados à avaliação de domínios cognitivos. Os instrumentos foram analisados considerando os parâmetros: construto avaliado, público-alvo, formas de administração e correção. Entre os instrumentos favoráveis, a maioria é destinada à avaliação da inteligência (46%), atenção (22%) e memória (20%), sendo direcionados para "adolescentes/adultos" (50%). A administração pode ser feita de forma individual/coletiva (59%), com correções realizadas tanto em formato informatizado quanto não informatizado (59%). Além disso, 59% dos testes analisados foram desenvolvidos no Brasil. Conclui-se que a maior parte dos instrumentos foca na inteligência e é voltada para adolescentes/adultos. Os instrumentos oferecem flexibilidade na aplicação e correção e, em sua maioria, são de origem nacional. Essas conclusões sublinham a importância da adequação dos instrumentos para garantir sua eficácia e relevância clínica.
Palavras-chave: neuropsicologia; avaliação; criança; adolescente.
ABSTRACT. Neuropsychological assessment is a technical procedure with clinical objectives, aimed at inferring brain and cognitive functioning based on behavior. Different methods and techniques are employed, including psychometric instruments that help delineate the neuropsychological profile from a nomothetic perspective. It is essential that these instruments have adequate psychometric parameters. In Brazil, the assessment of these parameters is conducted by the Psychological Test Assessment System (SATEPSI). To characterize instruments that can be used in pediatric neuropsychological assessment, a survey was conducted of the favorable test list from SATEPSI and consultations on the publishers' websites were conducted. Only instruments designed to assess the cognitive domains of children and adolescents were selected. The instruments were analyzed based on the following parameters: construct assessed, target audience, methods of administration, and correction. Among the favorable instruments, most are aimed for the assessment of intelligence (46%), attention (22%), and memory (20%), primarily targeting at "adolescents/adults" (50%). The administration can be conducted either individually or collectively (59%), with corrections performed in both computerized and non-computerized formats (59%). Furthermore, 59% of the analyzed tests were developed in Brazil. It is concluded that most of the instruments focus on intelligence and are targeted towards adolescents/adults. The instruments offer flexibility in both administration and correction, and the majority are of national origin. These findings highlight the importance of instrument adequacy to ensure their effectiveness and clinical relevance.
Keywords: neuropsychology; assessment; child; adolescent.
A neuropsicologia é uma ciência cujo principal objetivo é estudar a relação entre os comportamentos e o funcionamento do sistema nervoso. A neuropsicologia clínica aplica conhecimentos advindos das neurociências nos contextos de saúde, sendo a avaliação e a reabilitação suas principais práticas (COSTA et al., 2004; RAMOS; HAMDAN, 2016).
A Avaliação Neuropsicológica (ANp), procedimento realizado pelo profissional especialista em neuropsicologia, é um processo investigativo das funções cognitivas, como atenção, memória e linguagem, baseando-se no pressuposto monista e materialista de que o sistema neural fornece base para os comportamentos. Os principais objetivos clínicos da ANp são: caracterizar e analisar o funcionamento neuropsicológico; identificar déficits e potencialidades cognitivas do indivíduo, bem como seus mecanismos compensatórios; fornecer diagnóstico neuropsicológico e/ou diferencial; estabelecer prognóstico; orientar e planejar a reabilitação neuropsicológica, assim como outras intervenções; e monitorar a resposta às intervenções (COSTA et al., 2004; MALLOY-DINIZ et al., 2015; RAMOS; HAMDAN, 2016).
Especificamente, a ANp com crianças e adolescentes deve considerar o processo maturacional do cérebro, diferenciando variações esperadas do desenvolvimento de alterações funcionais (COSTA et al., 2004; HÜSSER; FOURDAIN; GALLAGHER, 2020; SOUZA, 2020), Dentre os princípios clínicos que norteiam a ANp com esse público, destacam-se a interdependência entre os diferentes domínios do desenvolvimento (físico, cognitivo e psicossocial), a caracterização de fatores protetivos e de risco, a avaliação dos aspectos contextuais e a influência da neuroplasticidade (GUYER; PÉREZ-EDGAR; CRONE, 2018; MCDONALD et al., 2016; SANIA et al., 2019).
Por meio da avaliação infantojuvenil, é possível identificar precocemente alterações no funcionamento cognitivo e comportamental, permitindo diagnósticos e intervenções mais precisos e adequados à fase de desenvolvimento. Este procedimento é recomendado em casos de alterações neurológicas que se manifestam em problemas cognitivos e comportamentais (COSTA et al., 2004; SOUZA, 2020).
Durante o processo de ANp infantojuvenil, utilizam-se diferentes métodos e técnicas, como entrevistas, observações, testes psicométricos e atividades lúdicas. Os testes psicométricos são uma importante fonte fundamental acerca do funcionamento cognitivo do indivíduo. Em geral, os instrumentos devem ser selecionados considerando as queixas apresentadas, hipóteses formuladas e características do indivíduo. Assim, o(a) profissional deve ter uma base técnica sólida e conhecimento das principais propriedades psicométricas dos instrumentos (CFP, 2022; MALLOY-DINIZ et al., 2015; RAMOS; HAMDAN, 2016).
Historicamente, no final da década de 1990 e início dos anos 2000, o cenário da avaliação psicológica no Brasil era caracterizado pela ausência de mecanismos de controle sobre a qualidade dos instrumentos psicológicos utilizados. Durante esse período, os Conselhos Regionais (CRP) e o Conselho Federal de Psicologia (CFP) enfrentaram processos internos e representações judiciais que questionavam a ética dos procedimentos de avaliação psicológica. Esse cenário refletia uma crise internacional, com críticas de que os(as) profissionais que utilizavam técnicas psicométricas não estavam alinhados com as diretrizes da psicologia contemporânea da época (CARDOSO; SILVA-FILHO, 2018; REPPOLD; NORONHA, 2018).
Em resposta a esses desafios, o Conselho Federal de Psicologia instituiu, em 2003, o Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos (SATEPSI) por meio da Resolução nº 002/2003. Este sistema foi criado para avaliar a qualidade dos instrumentos psicológicos e regular o exercício profissional na área de avaliação psicológica (CARDOSO; SILVA-FILHO, 2018; REPPOLD; NORONHA, 2018). O SATEPSI realiza uma análise técnico-científica para determinar se um instrumento psicológico é adequado para uso. Os testes submetidos ao SATEPSI são analisados pela Comissão Consultiva de Avaliação Psicológica (CCAP), no que se refere aos parâmetros psicométricos. A análise inclui a fundamentação teórica, as evidências empíricas de validade e precisão, e a clareza na apresentação dos procedimentos de aplicação e correção dos testes. Esses critérios são baseados nas diretrizes da International Test Commission (ITC), American Educational Research Association (AERA), American Psychological Association (APA) e National Council on Measurement in Education (NCME) (REPPOLD; NORONHA, 2018).
Alguns estudos conduzidos no período da criação do SATEPSI apontavam para a precariedade dos manuais e qualidade dos parâmetros psicométricos que eram utilizados pelos profissionais da Psicologia (CARDOSO; SILVA-FILHO, 2018; NORONHA et al., 2001; NORONHA et al., 2002; NORONHA; PRIMI; ALCHIERI, 2004). Noronha et al. (2001), analisaram manuais de 21 testes de inteligência que possuíam manual em português. As autoras verificaram se os manuais apresentavam informações básicas de caracterização do instrumento, áreas de aplicação, formato dos itens, número de itens, tipo de suporte durante a administração, formas de correção, normas de administração e correção, validade e precisão. Dentre os resultados obtidos, destacam-se aqueles referentes aos estudos de validade, sendo que 14,27% dos instrumentos não apresentavam tais informações.
Posteriormente, Noronha, Primi e Alchieri (2004) conduziram análise de 146 instrumentos comercializados no Brasil por onze editoras, na ocasião da criação do SATEPSI. Os resultados mostraram que 23,3% não explicitam a data de publicação, 76,7% haviam sido publicados no Brasil entre 1920 e 1989, e 23% tinham sido publicados entre 1990 e 2002. De todos os instrumentos, somente 28,8% relatavam estudos de precisão, validade e padronização em conjunto. Os principais construtos avaliados eram inteligência e/ou aptidões (41,1%) e personalidade (36,3%). Somente um instrumento (0,7%) foi categorizado para avaliar “alterações neuropsicológicas”.
Além do crescente aumento no número de instrumentos com pareceres favoráveis pelo SATEPSI, o público-alvo ao qual os instrumentos se destinam e os construtos avaliados também se diversificaram (CARDOSO; SILVA-FILHO, 2018; REPPOLD et al., 2017). Reppold et al. (2017) analisaram testes favoráveis pelo SATEPSI, com amostras normativas até 18 anos ou destinados para crianças e/ou adolescentes (n = 68). Entre os testes destinados exclusivamente a crianças (n = 18), destacaram-se aqueles que avaliavam inteligência (27,77%), personalidade (16,66%) e habilidades sociais (16,66%). Para adolescentes (n = 4), os testes avaliavam motivação para aprendizagem, maturidade para escolha profissional, estresse e habilidades sociais. Testes para crianças e adolescentes (n = 8) focavam em autoconceito (25,00%), personalidade (25,00%) e inteligência (25,00%), além de estresse e Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH). Para adolescentes e adultos (n = 26), os testes de personalidade (34,61%) e inteligência (26,92%) foram predominantes. Testes que incluíam amostras desde crianças até adultos (n=12) se concentravam em aspectos neuropsicológicos (41,66%) e inteligência (25%).
Tendo em vista que, para realizar uma ANp, é preciso ter conhecimento de informações específicas dos instrumentos, como construto avaliado, público-alvo, idade da amostra de normatização e formas de aplicação, além da habilidade de selecionar os instrumentos adequados, o objetivo do artigo é caracterizar os instrumentos restritos à Psicologia, com pareceres favoráveis no SATEPSI e que podem ser utilizados na ANp infantojuvenil.
Este estudo caracteriza-se como uma pesquisa documental descritiva. O método baseou-se no levantamento dos testes psicológicos com parecer favorável e privativos do psicólogo disponíveis no SATEPSI (https://satepsi.cfp.org.br/). Além do site do SATEPSI, foram consultados os sites das editoras responsáveis pela comercialização dos materiais, a fim de obter informações complementares sobre os instrumentos (Hogrefe, Vetor, Nilapress e Pearson). O período de levantamento foi de janeiro a julho de 2024.
Os critérios de inclusão foram: testes que avaliam exclusivamente funções cognitivas e têm como público-alvo crianças (até 12 anos) e/ou adolescentes (até 18 anos). Os critérios de exclusão abrangeram testes que avaliam construtos como personalidade, saúde mental e psicopatologia, processos afetivos/emocionais, técnicas projetivas, interesses/motivações/necessidades/expectativas, desenvolvimento, crenças/valores/atitudes, condutas sociais/desviantes, além de testes cujo público-alvo é maior que 18 anos.
Após a seleção dos instrumentos, procedeu-se à análise dos dados, considerando os seguintes aspectos: nome do teste, sigla, construto avaliado, público-alvo, idade da amostra de normatização, forma de aplicação e correção, e se o teste era nacional ou uma adaptação. Para os dados referentes aos construtos, foram utilizados os diferentes domínios cognitivos: inteligência, raciocínio, processos perceptuais, atenção, memória, funções executivas e rastreio neuropsicológico. Quanto ao público-alvo, os dados foram categorizados em: (i) “Crianças”; (ii) “Crianças/adolescentes”; (iii) “Adolescentes/adultos”; e (iv) “Crianças/adolescentes/adultos”.
A forma de aplicação foi classificada como: (i) “Individual”: quando permite a administração em somente um indivíduo por vez; e (ii) “Individual/coletiva”: quando, além da administração individual, o instrumento permite que diferentes indivíduos sejam avaliados simultaneamente.
A correção foi classificada como: (i) “Não informatizada”: quando o(a) profissional precisa realizar a correção usando o manual técnico do instrumento; (ii), “Informatizada”: quando o processo de correção é realizado usando exclusivamente o computador; ou (iii) `'Informatizada/não informatizada”: quando a correção pode ser realizada por meio de ambas as estratégias, sendo que a editora possui plataforma de correção informatizada. Além disso, os instrumentos foram caracterizados, como nacionais (construídos no Brasil) ou adaptados (resultado de adaptação transcultural).
A Tabela 1 apresenta a distribuição de frequência das características analisadas nos instrumentos. No total, foram analisados 46 testes psicológicos restritos, favoráveis pelo SATEPSI e destinados para crianças e adolescentes. Destes, 21 correspondem ao construto de inteligência (46%), 10 avaliam a atenção (22%), nove deles têm como objetivo avaliar a memória (20%), um avalia processos perceptuais (2%), dois avaliam funções executivas (4%), dois têm avaliam o raciocínio (4%), e um realiza rastreio neuropsicológico de diferentes funções cognitivas (2%). Observa-se que os instrumentos focam principalmente nos construtos de inteligência, atenção e memória, e com menor frequência os construtos de processos perceptuais e rastreio neuropsicológico.
A predominância de instrumentos voltados para a inteligência reflete uma continuidade histórica, considerando que se trata de um dos construtos mais clássicos e investigados na Psicologia, desde a criação do teste Binet-Simon no início do século XX. Estudos prévios destacam que a inteligência é frequentemente o foco de avaliações psicológicas e neuropsicológicas devido à sua relevância no diagnóstico de diferentes condições clínicas e no planejamento de intervenções (CAMPOS et al., 2014; ELING, 2014; HARVEY, 2012; REPPOLD et al., 2017). No que se refere à disponibilidade de instrumentos no Brasil, essa tendência é reforçada pelos achados de Noronha, Primi e Alchieri (2004), que também encontraram uma alta prevalência de instrumentos de inteligência entre os testes psicológicos analisados na ocasião da criação do SATEPSI.
Esse resultado também permite algumas reflexões sobre a prática profissional da ANp. Historicamente no Brasil, a avaliação do funcionamento intelectual é considerada atividade restrita aos(às) profissionais da Psicologia. Para outros construtos como a atenção, memória, linguagem e funções executivas, há instrumentos disponíveis que possuem propriedades psicométricas adequadas, estão publicados e podem ser utilizados por outros profissionais em suas práticas de avaliação, como é o caso da psicopedagogia e fonoaudiologia. Muitas vezes, a ANp é vista por outros profissionais como sinônimo de avaliação da inteligência, com encaminhamentos frequentes para avaliação intelectual específica e, em alguns casos, inclusive, indicando qual o teste o(a) profissional deverá utilizar durante o processo avaliativo.
A ANp deve ser um processo amplo que abrange diversos métodos e técnicas, mensurando diferentes domínios cognitivos além da inteligência, para descrever o funcionamento neuropsicológico completo e atingir os objetivos da avaliação (MOURA et al., 2016). Adicionalmente, dependendo da queixa e das hipóteses diagnósticas, pode ser necessária a investigação de outros domínios como personalidade, habilidades sociais e indicadores de saúde mental.
A significativa presença de instrumentos para avaliação da atenção (22%) e memória (20%) destaca a importância desses domínios cognitivos no desenvolvimento infantojuvenil. A atenção se subdivide em seletiva, sustentada, alternada e dividida, enquanto a memória inclui tipos como memória de trabalho e de longo prazo (ABREU et al., 2018; COUTINHO et al., 2018; HELENE; XAVIER, 2003; PETERSEN; POSNER, 2012). A classificação específica desses instrumentos por subtipos não foi conduzida no presente estudo, sugerindo uma área para futuras pesquisas, pois a precisão na avaliação dessas subdivisões pode ser fundamental para um diagnóstico neuropsicológico funcional.
Em relação ao público-alvo, dos instrumentos analisados, 23 são destinados a "adolescentes/adultos" (50%), 12 a "crianças/adolescentes/adultos" (26%), seis a "crianças" (13%), e cinco a "crianças/adolescentes" (11%). Agrupando os resultados do presente estudo, identificaram-se 23 instrumentos destinados a crianças e 40 instrumentos destinados a adolescentes. Isso sugere uma lacuna na disponibilidade de instrumentos especificamente desenvolvidos para crianças mais jovens e também uma ausência de instrumentos cognitivos exclusivos para adolescentes.
Esses achados corroboram com dados da literatura. No estudo de Reppold et al. (2017) dos 158 testes aprovados no SATEPSI, 18 (11,39%) eram direcionados à avaliação de crianças, 8 (5,06%) para crianças e adolescentes, 4 (2,53%) para adolescentes, 26 (16,45%) para adolescentes e adultos e 12 (7,59%) para crianças/adolescentes/adultos. Diferentemente do estudo de Reppold, o presente trabalho focou exclusivamente em testes que avaliam construtos cognitivos. Dessa forma, não foram identificados instrumentos destinados somente a avaliação de adolescentes. No trabalho de Reppold et al. (2017) todos os instrumentos identificados para adolescentes avaliam outros construtos, como motivação para aprendizagem, escolha profissional, estresse e habilidades sociais.
Estudos apontam a necessidade de desenvolver e validar instrumentos, considerando as especificidades do desenvolvimento da criança e do adolescente (DURATE; BORDIN, 2000; REPPOLD et al., 2017; SALLES et al., 2011; GUYER; PÉREZ-EDGAR; CRONE, 2018). Além disso, é importante destacar que para a ANp infantojuvenil, além dos instrumentos psicométricos, o(a) profissional também recorrerá a recursos não padronizados, como roteiros de observação, tarefas comportamentais, atividades e materiais lúdicos, baseados em modelos teóricos sobre o funcionamento cognitivo (CARDOSO et al., 2021).
Quanto à forma de aplicação, 27 (58%) instrumentos podem ser administrados de forma individual ou coletiva, enquanto 19 (41%) deles podem ser administrados apenas de maneira individual. No que tange à forma de correção, observou-se que em 27 (59%) pode ser feita tanto de maneira informatizada, quanto não informatizada, em 18 (39%) instrumentos, a correção deve ser feita somente de maneira não informatizada e em um (2%) deles a correção deve ser feita apenas de maneira informatizada.
Esta flexibilidade é essencial para a adaptação a diferentes contextos, facilitando a implementação dos testes em diversas situações, conforme as necessidades específicas das populações (CFP, 2022). A regulamentação pelo Conselho Federal de Psicologia para o uso de Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC) na avaliação psicológica reflete um avanço significativo, especialmente após a pandemia de SARS-CoV-2, na qual a aplicação remota se tornou necessária (MARASCA et al., 2020). Em 2020, no SATEPSI, apenas quatro instrumentos permitiam aplicação online e remota, enquanto 20 permitiam aplicação informatizada (MARASCA et al., 2020).
Estudos evidenciam benefícios na aplicação e correção informatizada de instrumentos, dentre eles a coleta de tempo de reação, armazenamento mais rápido dos protocolos respondidos, além da maior facilidade na interpretação dos resultados (MARASCA et al., 2020). Discussões recentes sobre a testagem adaptativa computadorizada (Computerized Adaptive Testing - CAT) também são crescentes, uma vez que se trata de um procedimento de aplicação de testes que considera as respostas dadas pelo indivíduo avaliado, estabelecendo uma hierarquia de dificuldade dos itens (PITON-GONÇALVES; ALUÍSIO, 2015).
Por fim, observa-se que 27 dos instrumentos analisados são nacionais (59%) e 19 adaptados (41%). A predominância de instrumentos nacionais destaca a contribuição significativa da pesquisa brasileira na área de avaliação neuropsicológica, com instrumentos desenvolvidos localmente sendo mais adequados às especificidades culturais e sociais do país (CARDOSO; SILVA-FILHO, 2018; REPPOLD et al., 2017).
Em suma, os resultados deste estudo são consistentes com a literatura existente e ressaltam a importância de uma abordagem abrangente e contextualizada na avaliação neuropsicológica infantojuvenil. A ênfase na avaliação da inteligência, atenção e memória, a flexibilidade na aplicação e correção dos instrumentos, e a contribuição da pesquisa nacional são aspectos fundamentais para a eficácia e relevância clínica das avaliações. No entanto, é necessário continuar a desenvolver e validar instrumentos específicos para crianças mais jovens, a fim de melhorar a precisão das avaliações nessa faixa etária e atender às demandas clínicas emergentes.
Tabela 1 – Distribuição de frequência das características dos instrumentos analisados.
Construto |
f |
% |
Inteligência |
21 |
46 |
Raciocínio |
02 |
04 |
Processos perceptuais |
01 |
02 |
Atenção |
10 |
22 |
Memória |
09 |
20 |
Funções executivas |
02 |
04 |
Rastreio |
01 |
02 |
Público-alvo |
f |
% |
Crianças |
06 |
13 |
Crianças/ Adolescentes |
05 |
11 |
Adolescentes/ Adultos |
23 |
50 |
Crianças/ Adolescentes/ Adultos |
12 |
26 |
Forma de aplicação |
f |
% |
Individual/ Coletiva |
27 |
59 |
Individual |
19 |
41 |
Forma de correção |
f |
% |
Informatizada |
01 |
02 |
Não informatizada |
18 |
39 |
Informatizada/ Não informatizada |
27 |
59 |
Teste |
f |
% |
Nacional |
27 |
59 |
Adaptado |
19 |
41 |
Total |
46 |
100 |
Fonte: Próprio autor
O presente estudo possui algumas limitações que devem ser mencionadas. Primeiramente, é importante ressaltar que, além dos instrumentos listados no SATEPSI, existem outros publicados, que possuem propriedade psicométricas adequadas, não são restritos à Psicologia e que não foram incluídos nesta análise. No entanto, optou-se por focar apenas nos instrumentos avaliados pelo SATEPSI, devido ao objetivo de levantar informações sobre testes que possuem a avaliação da Comissão Consultiva de Avaliação Psicológica (CCAP).
Outra limitação a ser considerada é que, no processo de ANp, além da avaliação de funções cognitivas, são feitas investigações específicas de outros construtos psicológicos e domínios do desenvolvimento. No entanto, neste estudo, foi decidido por concentrar-nos exclusivamente nas funções cognitivas. Essa escolha foi motivada pelo desejo de detalhar ao máximo os instrumentos relacionados a essas funções e manter o foco no objetivo central da ANp.
Por fim, determinou-se que este estudo não incluiria a análise dos instrumentos por subtipos das funções cognitivas. Esta escolha foi feita para simplificar a análise e manter o foco nos objetivos principais do estudo, embora reconheçamos que a análise por subtipos poderia oferecer uma visão mais detalhada e específica dos instrumentos. Estudos posteriores podem aprofundar essas análises considerando os pontos de limitação do presente estudo.
Com base nos resultados apresentados, observa-se que os instrumentos com parecer favorável no SATEPSI, que podem ser utilizados na ANp infantojuvenil, focam principalmente nos construtos de inteligência, atenção e memória. Os instrumentos selecionados geralmente se destinam ao público "adolescentes/adultos" e oferecem flexibilidade na forma de administração, permitindo tanto a aplicação individual quanto coletiva. Além disso, a correção dos testes pode ser realizada de forma informatizada ou não informatizada, dependendo do instrumento. É relevante observar que a maioria dos instrumentos disponíveis é nacional, destacando a contribuição e avanço da pesquisa brasileira na área da avaliação psicológica infantojuvenil.
Essas conclusões ressaltam a importância de considerar a adequação dos instrumentos utilizados na prática clínica, visando uma avaliação precisa e confiável do funcionamento cognitivo nessa faixa etária. O estudo contribuiu para estabelecer um panorama atual acerca dos instrumentos cognitivos aprovados pelo SATEPSI para uso com crianças e adolescentes, além de nortear possíveis metas para a produção científica nessa área.
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Recebido em: 01/07/2024
Publicado em: 15/04/2025