AVALIAÇÃO DA PREVENÇÃO E DO MANEJO DA SÍNDROME DE REALIMENTAÇÃO EM UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA EM DE SÃO PAULO – SP
EVALUATION OF THE PREVENTION AND MANAGEMENT OF REFEEDING SYNDROME IN AN INTENSIVE CARE UNIT OF SÃO PAULO - SP
ZAMINELLI, Caroline Xavier1; MENEZES, Amanda Caroline Cardoso Corrêa Carlos2
1Nutricionista residente em Atenção à Terapia Intensiva pela Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo (SMS-SP); 2 Coordenadora de Assistência em Nutrição do Hospital do Servidor Público Municipal (SMS-SP)
carolinezaminelli@gmail.com
RESUMO. A Síndrome de Realimentação (SR) é caracterizada por alterações sistêmicas, prejuízo no metabolismo de glicose e redução dos níveis séricos de eletrólitos e tiamina após reintrodução de suporte nutricional, tendo como principais grupos de risco os pacientes com histórico de desnutrição, vícios e/ou longos períodos de jejum. Este estudo teve como objetivo identificar como são realizadas as medidas de prevenção e manejo da SR em pacientes de uma Unidade de Terapia Intensiva e comparar com o consenso da ASPEN de 2020. O estudo foi longitudinal prospectivo, por meio da análise de dados de prontuários de 20 pacientes adultos internados em UTI, com risco moderado a alto de desenvolver a SR e prescrição dietoterápica por qualquer via. A comparação entre critérios de risco/depleção de eletrólitos e suplementação de tiamina ou reposições venosas foi compilada para análise estatística considerando significância de 5% e o relato das condutas frente à SR foram apresentados descritivamente. Não houve diferença significativa entre a suplementação de tiamina e critérios de risco analisados, tampouco entre a depleção de magnésio e a reposição venosa, e esses achados estão em desacordo com o preconizado pela literatura. O potássio foi reposto na maioria dos pacientes e a equipe de nutrição realizou acompanhamento diário dos pacientes, exceto o peso, com progressão lenta de nutrientes, corroborando com as recomendações da ASPEN. Foi possível concluir que o acompanhamento diário de exames, reposição de potássio quando depletado e progressão lenta foram ações de prevenção observadas, porém a não reposição de fósforo e tiamina diante da depleção/risco foram são contrárias às recomendações. Os achados deste estudo podem contribuir para melhorias no manejo hospitalar e protocolos institucionais voltados à SR.
Palavras-chave: síndrome de realimentação; unidade de terapia intensiva; distúrbios hidroeletrolíticos.
ABSTRACT. The Refeeding Syndrome (RS) is characterized by systemic changes, impairments in glucose metabolism, and reduction in serum levels of electrolytes and thiamine after the reintroduction of nutritional support. The main risk groups include patients with a history of malnutrition, addiction and long periods of fasting. This study aimed to identify how preventive and management measures for RS are carried out in patients in an Intensive Care Unit and compare with the 2020 ASPEN consensus. This was a prospective longitudinal study using medical records data from 20 adult patients admitted to the ICU, with moderate/high risk of developing RS and prescription of diet therapy through any mean. The comparison between risk/electrolyte depletion criteria and thiamine supplementation or venous replacements was compiled for statistical analysis, considering a significance level of 5%, and the observed RS management practices were presented descriptively. There was no significant association between thiamine supplementation and the analyzed risk criteria, as well as between magnesium depletion and venous replacement. Both findings contradict what is recommended in the literature. Potassium was replenished in the majority of patients, and the nutrition team monitored patients daily, except for the weight, with a slow caloric progression, aligned with ASPEN recommendations. It was concluded that daily monitoring of biochemical exams, potassium replacement when depleted, and slow progression were preventive actions observed. However, the lack of phosphorus and thiamine replacement in the face of depletion/risk contradict recommendations. The findings in this study may contribute to improvements in Refeeding Syndrome hospital management and institutional protocols.
Keywords: refeeding syndrome; intensive care unit; electrolyte imbalance.
A síndrome de realimentação (SR) se caracteriza por alterações metabólicas, eletrolíticas, neurológicas, cardiovasculares, hematológicas e respiratórias. Pacientes acometidos por essa condição apresentam alterações no metabolismo de glicose e na redução dos níveis séricos de potássio, fósforo e magnésio. Os principais grupos de risco são os pacientes submetidos à reintrodução de terapia nutricional que possuem desnutrição prévia ou que passaram por períodos prolongados de jejum (KRAFT, BTAICHE, SACKS, 2005; CROOK, HALLY, PANTELI, 2001).
A SR pode acontecer em indivíduos submetidos a qualquer via de suporte nutricional, uma vez que há relatos de casos de Síndrome de Realimentação após a reintrodução do aporte nutricional via oral, via enteral ou via parenteral, podendo gerar diversas complicações, como a cardiopulmonar (SOLOMON, KIRBY, 1990).
Atualmente, os critérios diagnósticos da patologia são variáveis, não havendo um consenso universal acerca de quais parâmetros devem ser observados para constatar a existência da SR. Este cenário impacta diretamente nas taxas de incidência da SR, que varia de 0 a 80% em diversos estudos, a depender do critério diagnóstico adotado na metodologia de pesquisa (FRIEDLI et. al., 2017).
A fisiopatologia da doença é explicada quando são comparados os estados metabólicos do organismo humano nos cenários de jejum prolongado e/ou desnutrição crônica com o momento de reinserção da oferta nutricional. Em períodos de privação nutricional, por jejum e/ou desnutrição, a produção de insulina é diminuída enquanto os níveis de glucagon se elevam, estimulando esgotamento de reservas corporais de glicogênio. À medida que estas reservas se esgotam, o corpo passa a utilizar os aminoácidos como fonte energética, ocasionando o catabolismo proteico (MCCRAY, WALKER, PARRISH, 2005).
Por outro lado, ao reintroduzir abruptamente o aporte nutricional, ocorre uma elevação dos níveis de insulina, em detrimento do glucagon, favorecendo a síntese de glicogênio, gorduras e proteínas. Este processo de transição rápida entre catabolismo e anabolismo tem como consequência o intenso recrutamento intracelular de fósforo, potássio e magnésio, eletrólitos que são cofatores essenciais para a produção das reservas citadas, tendo seus níveis séricos reduzidos (MCCRAY, WALKER, PARRISH, 2005).
Além dos eletrólitos, é estabelecido na literatura que a deficiência de vitamina B1 (tiamina) tem correlação com a Síndrome de Realimentação (SOLOMON, KIRBY, 1990). Apesar de não ser um dos principais marcadores da SR, esta vitamina se mostra importante por ser precursora de cofatores em diversas vias bioquímicas essenciais para o funcionamento normal do metabolismo de glicose no organismo. Outras implicações da deficiência de tiamina são as alterações na via de produção de acetil-CoA, que conduzem ao aumento excessivo de lactato, causando acidose lática (MCCRAY, WALKER, PARRISH, 2005). Esta vitamina pode estar depletada não somente após longo período de jejum, visto que pacientes que tenham histórico de abuso de álcool e drogas também apresentam maior risco de deficiência (SAD et. al., 2019; ASPEN, 2020).
Um dos pilares do manejo clínico da SR é a prevenção, que é pautada na observação dos níveis de eletrólitos antes e após a introdução da terapia nutricional, além da reposição de vitamina B1 e do aumento gradual do aporte calórico (ASPEN, 2020). Ainda que seja muito importante iniciar intervenção nutricional precocemente em pacientes críticos, é necessário cautela quanto à velocidade que este aporte nutricional é introduzido, principalmente quando se fala de indivíduos cujo organismo teve que se adaptar a um longo período de privação nutricional (VIANA, BURGOS, SILVA, 2012).
Os exames bioquímicos devem ser monitorados diariamente pela equipe antes e após a reintrodução de alimentação, por um período mínimo de quatro dias. Caso sejam observados distúrbios eletrolíticos, como baixa em potássio, fósforo e magnésio ainda no período de jejum, recomenda-se que as reposições venosas necessárias sejam feitas previamente ao retorno da alimentação, visando correção dos parâmetros para minimizar os riscos de desenvolver a síndrome (VIANA, BURGOS, SILVA, 2012).
A identificação precoce das alterações compatíveis com a doença é essencial para que o tratamento seja iniciado o quanto antes. Este tratamento consiste em correções de acordo com os sintomas apresentados, como reposições venosas de soluções eletrolíticas e correção de glicemia. Para que esta identificação ocorra rapidamente, é importante que a equipe multiprofissional esteja atenta aos exames laboratoriais e aos sintomas dos pacientes com risco aumentado, para que nos primeiros sinais da Síndrome, as devidas medidas possam ser providenciadas, e assim, evitar piora do quadro e desfechos clínicos desfavoráveis (KRAFT, BTAICHE, SACKS, 2005).
A condução de estudos sobre o tema pode ser benéfica para maior conscientização de profissionais da saúde de forma a auxiliar em melhores medidas de prevenção e manejo da Síndrome de Realimentação dentro do ambiente hospitalar, uma vez que a SR é complexa, com implicações sistêmicas e potencialmente fatal ao paciente.
Por fim, o presente trabalho teve como objetivo identificar como são realizadas as medidas de prevenção e de manejo da Síndrome de Realimentação em pacientes adultos internados em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e comparar com o preconizado pelo consenso da ASPEN de 2020.
Trata-se de um estudo longitudinal prospectivo, realizado em um hospital público de São Paulo, com pacientes adultos internados em Unidade de Terapia Intensiva (UTI) no período de julho de 2023 a outubro de 2023. Os descritores foram definidos levando em consideração o banco de dados da plataforma DeCs/MeSH. A pesquisa faz parte do Programa de Pós-Graduação Lato sensu modalidade de Residência Multiprofissional em Atenção à Terapia Intensiva da Comissão de Residência Multiprofissional da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo (COREMU SMS SP).
O estudo obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa responsável pelo hospital, sob CAAE nº 70555623.0.0000.0073. Para autorização de participação e coleta de dados de prontuário de cada um dos participantes, foi preenchido um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido por seu familiar responsável.
A amostra foi de 20 pacientes, com delineamento definido por conveniência, considerando os seguintes critérios de inclusão: pacientes adultos (acima de 18 anos) internados na Unidade de Terapia Intensiva; com risco moderado e elevado para desenvolvimento de SR e com prescrição de dietoterapia (oral, enteral, parenteral). Como critérios de exclusão, foram considerados: pacientes menores de 18 anos de idade; sem risco de desenvolvimento de SR; sem necessidade de prescrição de dietoterapia oral, enteral ou parenteral; aqueles que negaram a participação na pesquisa.
A coleta de dados foi pautada na observação de prontuários dos pacientes antes e após o início da terapia nutricional, bem como dos exames bioquímicos (potássio, magnésio e fósforo), prescrições e evoluções médicas, além de evoluções da equipe de nutrição e as fichas de acompanhamento nutricional. Foram investigados o modelo de acompanhamento de risco, diagnóstico e as condutas de cada profissional acerca da prevenção da Síndrome de Realimentação.
Os critérios para classificação de risco da Síndrome de Realimentação para categorização dos pacientes e os valores de referência para avaliação dos exames bioquímicos, utilizados para diagnóstico da patologia, podem ser observados na Tabela 1.
Tabela 1 - Critérios de referência para avaliação bioquímica e classificação de risco da SR.
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Classificação de risco da SR |
Critérios a |
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Risco moderado (2 ou mais critérios) |
- IMC 16 a 18,5 kg/m2 - Jejum ou ingestão negligenciável por 5 a 6 dias - Histórico de abuso de álcool e/ou drogas - Evidência de perda muscular moderada em exame físico - Valores de eletrólitos baixos, ou valores normais com recente queda e necessidade de suplementação pontual
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Risco elevado (1 ou mais critérios) |
- IMC <16 kg/m2 - Jejum ou ingestão negligenciável por >7 dias - Valores de eletrólitos significativamente baixos, minimamente normais ou normais, porém com recente queda e necessidade de suplementação em larga escala - Evidência de perda severa de massa muscular em exame físico |
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Parâmetros bioquímicos |
Valores de referência b |
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Magnésio |
1,6 – 2,3 mg/dl |
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Potássio |
3,5 – 5,1 mmol/L |
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Fósforo |
2,5 – 4,5 mg/dl |
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a Adaptado de ASPEN, 2020; b protocolo do laboratório da unidade em questão (CientíficaLab). Fonte: Próprio autor.
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Os dados relacionados à caracterização dos participantes da pesquisa, por meio de valores brutos e percentuais e do relato das condutas nutricionais (medidas de prevenção da SR dentro da UTI), foram apresentados de maneira descritiva e comparados ao recomendado pelo consenso da ASPEN (2020).
As análises entre reposições de eletrólitos e/ou tiamina, associadas aos critérios de risco de Síndrome de Realimentação foram realizadas por meio de testes estatísticos comparativos, com nível de significância de p ≤0,05, no software Jamovi versão 2.3.28. Para avaliar a relação entre as reposições realizadas (tiamina, potássio e magnésio) e os critérios de risco dicotômicos (presença de desnutrição, histórico de abuso de álcool/drogas, depleção em potássio e magnésio), foi utilizado o teste exato de Fisher. O mesmo teste foi utilizado para avaliar a associação entre as reposições realizada com o período de jejum (critério de risco categórico ordinal), com confirmação através do teste Mann-Whitney, com os dados brutos dos dias de jejum de cada paciente.
A amostra estudada consistiu em 20 pacientes, sendo 15 homens (75%) e 5 mulheres (25%), dos quais 16 participantes brancos (80%) e quatro não brancos (pretos, pardos e amarelos). Quanto à faixa etária, a amostra contou com 8 pacientes (40%) entre 35 e 59 anos e 12 pacientes (60%) acima dos 60 anos. Portanto, a predominância dos participantes do estudo foi de homens brancos acima dos 60 anos de idade.
Na Tabela 2, estão apresentados os resultados das análises comparativas entre os grupos classificados de acordo com os fatores de risco para a SR e a suplementação de tiamina (B1) realizada na Unidade de Terapia Intensiva (UTI).
Tabela 2 – Análise comparativa entre critérios de risco da SR e a prescrição de tiamina suplementar.
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Variável |
N (%) |
TIAMINA (n) |
Valor pa |
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20 (100) |
11 (55) |
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Grupo de risco |
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0,197 |
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Moderado |
12 (60) |
5 (42) |
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Elevado |
8 (40) |
6 (75) |
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Histórico de vícios |
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1,000 |
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Álcool e/ou drogas |
9 (45) |
5 (56) |
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Sem vícios |
11 (55) |
6 (54) |
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Estado nutricional |
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0,362 |
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Desnutrição |
8 (40) |
3 (38) |
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Bem nutridos |
12 (60) |
8 (67) |
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Período de jejum |
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0,460 0,146b |
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0 a 4 dias |
8 (40) |
3 (38) |
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5 a 6 dias |
5 (25) |
3 (60) |
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≥ 7 dias |
7 (35) |
5 (71) |
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a Teste exato de Fisher, b Teste Mann-Whitney para confirmação de não significância.
Fonte: Próprio autor.
Dos 20 pacientes participantes da pesquisa, 60% foram classificados com risco moderado para SR, dos quais 42% receberam reposição de tiamina. Do total da amostra, 40% foram classificados com risco elevado para SR e destes, 75% receberam reposição de tiamina. Quando verificado a relação entre o grupo classificado e a suplementação de tiamina não houve diferença estatisticamente significativa. De acordo com Franca e Silva (2006) é relatado que a tiamina pode estar depletada em vigência da realimentação, evidenciando a importância da suplementação em pacientes com algum grau de risco de desenvolver a SR após reinício do aporte nutricional.
Ademais, o consenso sobre a SR publicado pela ASPEN em 2020 determina como medida de prevenção a suplementação de 100mg de tiamina mesmo durante o jejum. Dentro do presente estudo, 11 pacientes tiveram suplementação da vitamina (B1), porém 45% destes não receberam suplementação antes da liberação do jejum e retorno do aporte nutricional, cenário contrário à recomendação.
Não foi observada associação significativa entre a suplementação de tiamina e o histórico de vícios em substâncias como álcool e drogas, sendo observado que 9 pacientes (45%) tinham este histórico e cinco destes (56%) receberam suplementação, enquanto 11 pacientes (55%) não tinham vícios prévios ou atuais, e 6 pacientes (54%) foram suplementados. Este achado conflita com o determinado em literatura, visto que já foram observadas associações entre o alcoolismo e a depleção sanguínea de tiamina. O metabolismo desta vitamina sofre prejuízos em etilistas pois, nestas condições, há uma diminuição da capacidade de estocagem hepática e no transporte intestinal, além de menor conversão da tiamina em sua forma ativa no organismo e absorção prejudicada por distúrbios nutricionais relacionados à dieta e escolhas alimentares (THOMAZ et. al., 2014).
Rees e Gowing (2013) observaram que pessoas com histórico de etilismo têm níveis séricos de tiamina mais baixos, tanto pelo metabolismo prejudicado da vitamina quanto por más escolhas alimentares de etilistas crônicos, que tendem a diminuir a qualidade da alimentação devido ao uso abusivo da substância. Um grupo de pesquisadores (ZUBARAN et. al., 1996) observou que o prejuízo causado pelo abuso de álcool na absorção da vitamina B1 pode resultar em uma importante depleção dos níveis séricos, aumentando o risco de desenvolver síndrome de Wernicke-Korsakoff, caracterizada por distúrbios mentais e de consciência.
Pouco se sabe sobre a relação entre uso abusivo de drogas e o metabolismo da tiamina, porém, é sabido que a dependência química tem efeito deletério nas escolhas alimentares, resultando na pior qualidade da dieta. Assim como etilistas, muitos usuários de substâncias químicas têm a diminuição do apetite durante o período ativo de uso, acarretando consumo energético/proteico insuficiente para atingir as necessidades diárias e levando à desnutrição (SCHRAMM et. al., 2009; SIRTULI et. al., 2015). Considerando este cenário, é importante se atentar ao maior risco de depleção da tiamina e desenvolvimento da Síndrome de Realimentação em dependentes químicos.
Quanto ao estado nutricional, 40% dos participantes foram classificados como desnutridos, e a minoria destes indivíduos (38%) recebeu suplementação de tiamina. A não suplementação de tiamina em pacientes desnutridos pode elevar o risco de desenvolvimento da SR, e os achados do presente estudo contrariam o preconizado em literatura, que enfatiza a importância de realizar suplementação desta vitamina em pacientes desnutridos, pois sabe-se que em situação de desnutrição, a capacidade do organismo em produzir reservas adequadas de nutrientes, incluindo a vitamina B1, está prejudicada. A desnutrição por si só é considerada um critério de risco para desenvolver a SR (ASPEN, 2020), o que pode ser agravado pela depleção dos níveis de tiamina que é possível ocorrer em individuo desnutrido, visto que em vigência da síndrome, há o risco de esgotamento das reservas corporais de tiamina, trazendo consequências clínicas negativas, como por exemplo, a síndrome de Wernicke-Korsakoff (CARDOSO, 2019).
O jejum prolongado, definido como período sem alimentação ou nutrientes por mais de 72 horas, contribui para a diminuição das reservas corporais e depleção de níveis séricos de eletrólitos e vitaminas, principalmente da tiamina, devido ao catabolismo exacerbado induzido pelo período de baixa ou nenhuma ingestão alimentar (OLINTO et. al., 2020; FERREIRA & NEUMANN, 2019). Considerando esse cenário, é possível dizer que suplementação da vitamina B1 é de suma importância em pacientes que passam por longos períodos de jejum para evitar maiores complicações e diminuir o risco de Síndrome de Realimentação.
Foi evidenciado em relato de caso realizado por Carvalho e colaboradores (2006), onde foi observada doença de Wernicke-Korsakoff em paciente que passaram por jejum enteral e oral superior a 30 dias, recebendo aporte energético e proteico por via parenteral, porém sem suplementação de vitamina B1 na fórmula prescrita. Os resultados deste trabalho contrariam o recomendado pela literatura, visto que 60% dos pacientes foram submetidos a períodos de jejum superiores a 5 dias, porém não houve associação significativa entre a suplementação de tiamina e o período de privação alimentar.
No que tange ao monitoramento dos níveis séricos dos eletrólitos ao longo da internação dos pacientes participantes, foram observados os exames diários de fósforo, potássio e magnésio e comparados à realização de reposição endovenosa (Tabela 3).
Tabela 3. Análise comparativa entre alterações nos parâmetros bioquímicos e reposição endovenosa dos eletrólitos.
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N (%) |
Reposição de potássio N (%) |
Valor pa |
||
|
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Realizada |
Não realizada |
0,202 |
|
Sim |
14 (70) |
13 (93) |
1 (7) |
|
|
Não |
6 (30) |
4 (67) |
2 (33) |
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Hipomagnesemia |
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Reposição de magnésio N (%) |
Valor pa |
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|
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Realizada |
Não realizada |
0,266 |
|
Sim |
5 (25) |
5 (100) |
0 |
|
|
Não |
15 (75) |
10 (67) |
5 (33) |
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Hipofosfatemia |
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Reposição de fósforo N (%) |
Valor p |
|
|
|
|
Realizada |
Não realizada |
|
|
Sim |
4 (20) |
0 |
4 (100) |
- |
|
Não |
16 (80) |
0 |
16 (100) |
- |
a Teste exato de Fisher.
Fonte: próprio autor.
Dos 14 dos pacientes (70%) com potássio depletado, 13 pacientes (93%) tiveram reposição endovenosa do eletrólito. Este resultado está de acordo com o evidenciado em literatura, mesmo que não tenha apresentado significância estatística. Um grupo de pesquisadores (DUTRA et. al., 2012) conduziu um estudo de revisão sistemática e evidenciou a importância da correção por via venosa dessa deficiência a fim de evitar piores manifestações clínicas. Além disso, quando se fala sobre Síndrome de Realimentação, o potássio está inserido nas recomendações do consenso da ASPEN (2020), que preconiza a correção venosa do eletrólito assim que identificada a depleção, recomendando ainda que os níveis séricos sejam reestabelecidos antes mesmo da liberação do jejum.
A reposição de magnésio não teve associação significativa com a depleção do eletrólito, visto que a maior parte dos pacientes com reposição não apresentaram baixa no magnésio. Essa reposição sem diminuição dos níveis séricos pode ser explicada pela possível ação do sulfato de magnésio em relação à proteção hemodinâmica. Mendonça et. al. (2017) observaram que esse fármaco tende a ter efeito vasodilatador, além de manter o nível de epinefrina estável e reduzir a elevação da norepinefrina, contribuindo para estabilidade hemodinâmica do paciente crítico.
A população desta pesquisa estava inserida no contexto de uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI), ou seja, são pacientes críticos e grande parte passou por períodos de instabilidade hemodinâmica, sendo necessário o uso de ventilação mecânica, drogas vasoativas e sedação. Por isso, pode-se explicar a suplementação de magnésio mesmo em pacientes que não apresentaram hipomagnesemia.
A hipofosfatemia teve baixa ocorrência na população estudada, com apenas 4 pacientes (20%) demonstrando tal depleção. A falta de solicitação diária do exame bioquímico pode ser uma limitação, visto que há chances de subnotificação da hipofosfatemia quando o exame não é solicitado com a frequência necessária, principalmente em pacientes com risco de SR. Ainda assim, vale ressaltar que não houve reposição venosa deste eletrólito mesmo em vigência da deficiência, uma vez que a reposição não é realizada como rotina do setor. A importância da reposição venosa deste eletrólito como tratamento da hipofosfatemia foi evidenciada por Dutra et. al. (2012) em estudo de revisão sistemática, com dose recomendada de 2,5 a 5,0 mg de fosfato por quilo de peso. Os autores enfatizam que a hipofosfatemia moderada ou grave acarreta prejuízos respiratórios, neurológicos, distúrbios de força motora e até mesmo óbito. Ademais, o fósforo é um dos eletrólitos chave na identificação da Síndrome de Realimentação, sendo recomendado pela ASPEN (2020) a reposição venosa quando detectada a diminuição do nível sérico abaixo de 2,5 mg/dl.
Por ser um assunto relativamente novo, ainda não existe uma diretriz mundial ou brasileira acerca da Síndrome de Realimentação. Até o momento, está disponível apenas o consenso da ASPEN (2020), que dispõe sobre o tema e pode ser utilizado como referência, uma vez que preconiza medidas de prevenção, de diagnóstico e de tratamento da SR.
Além da observação diária dos exames bioquímicos, da correção dos eletrólitos depletados e da suplementação de tiamina, o documento também traz recomendações acerca das condutas nutricionais voltadas ao paciente com risco de Síndrome de Realimentação. O recomendado é que todos os pacientes em risco de desenvolver a SR sejam acompanhados diariamente pela equipe de nutrição, com estabelecimento de metas calóricas e proteicas individualizadas e aferição ou estimativa de peso diária. Além disso, é preconizado que a progressão do aporte calórico deve ser realizada lentamente nas primeiras 72 horas, iniciando com 10 a 20 kcal/kg nas primeiras 24 horas e com aumento de 33% a cada 1 ou 2 dias (ASPEN, 2020).
Pode-se dizer que as ações realizadas pela equipe nutricional da UTI observadas neste trabalho estão de acordo com o preconizado pela ASPEN (2020), visto que todos os pacientes com risco de SR, são acompanhados diariamente por meio da checagem de exames bioquímicos com olhar atento aos eletrólitos, observação do caso clínico e tomada de conduta nutricional. A avaliação nutricional completa com aferição ou estimativa de peso na unidade ocorreu semanalmente seguindo o protocolo da instituição, contrário ao recomendado pelo documento referência quanto à progressão do aporte calórico, todos os participantes (100%) receberam baixa oferta calórica nas primeiras 24 horas, tanto por via oral quanto via enteral e via parenteral, atendendo o recomendado pelo consenso. Após 1 ou 2 dias, a progressão da oferta nutricional respeitou o limite recomendado de 33% (ASPEN, 2020) [CZ1] em 90% dos pacientes acompanhados neste trabalho.
Como limitação do estudo, pode-se citar o tamanho reduzido de amostra, que pode influenciar na significância estatística dos resultados analisados. Ainda, sugerem-se novos estudos acerca do assunto, com maior casuística, a fim de elucidar as relações entre os critérios de risco da Síndrome de Realimentação e as medidas de prevenção realizadas dentro de UTI e enfermarias hospitalares.
Os pacientes em risco de Síndrome de Realimentação foram acompanhados diariamente na UTI avaliada no presente estudo. Como ações de prevenção, foram observadas a reposição de potássio em vigência de depleção, aumento lento e progressivo do aporte nutricional em via oral, enteral e parenteral, e o acompanhamento diário dos exames bioquímicos de potássio e magnésio. Entretanto, a não solicitação diária de exame de fósforo antes e após a liberação do jejum dos pacientes em risco mostra a subnotificação da hipofosfatemia e da SR.
A não reposição de fósforo quando detectada a depleção, somada ao não acompanhamento diário do peso dos pacientes em risco e, a não associação entre reposição de tiamina e risco da SR são ações que não vão de encontro ao consenso da ASPEN.
Os achados deste estudo podem contribuir com discussões de equipe multidisciplinar voltadas à Síndrome de Realimentação, a fim de elaborar estratégias mais eficazes de prevenção e manejo dentro do ambiente hospitalar, promovendo melhorias no protocolo institucional.
CARDOSO, T. M. R. Desnutrição no idoso: a problemática da Síndrome de Realimentação. Tese de Mestrado – Faculdade de Medicina, Universidade de Coimbra, Coimbra, 2019. Disponível em: https://estudogeral.uc.pt/handle/10316/89859. Acesso em 02 de dezembro de 2023.
CARVALHO, W. L.; PEDATELLA, M. T. A.; SILVA, M. I.; OLIVEIRA, L. G. R. S. de. Doença de Wernicke: relato de caso. Revista Estudos - Vida e Saúde, v. 33, n. 6, p. 945–950, 2007. Disponível em: https://seer.pucgoias.edu.br/index.php/estudos/article/view/35. Acesso em 6 de dezembro de 2023.
CROOK, M.A.; HALLY, V.; PANTELI J.V. The importance of the refeeding syndrome. Nutrition, v.17, n. 7–8, Pg 632-637, 2001. Disponível em: https://doi.org/10.1016/S0899-9007(01)00542-1. Acesso em 22 maio de 2023.
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[CZ1]A referência de todo este parágrafo é o documento da ASPEN, de 2020. Caso fique repetitivo citar novamente, posso retirar sem problemas.